UNESP 2025 – Questão 6

Linguagens / Português / Estrutura e Formação das Palavras / Formação de Palavras
Leia o conto “Passei por um sonho”, do escritor angolano José Eduardo Agualusa (1960- ).

1 Começou com um sonho. Afinal, é como começa quase tudo. Justo Santana, enfermeiro de profissão, sonhou um pássaro.
— Passei por um sonho — disse à mulher quando esta acordou —, e vi um pássaro.
A mulher quis saber que espécie de pássaro, mas Justo Santana não foi capaz de precisar. Era um pássaro grande, grave, branco como um ferro incandescente, e com umas asas ainda mais brilhosas, que o dito pássaro usava sempre abertas, de tal maneira que fazia lembrar Jesus Cristo pregado na cruz.
— Fui sonhado por ti — disse-lhe o pássaro —, com o fim de esclarecer o espírito dos Homens e de trazer a liberdade a este pobre país.
5 O discurso do pássaro assustou o enfermeiro, homem simples, tímido, avesso a confrontos, e sem qualquer vocação para a política.
— Foi apenas um sonho — disse à mulher —, um sonho estúpido.
Na noite seguinte, porém, o pássaro voltou a aparecerlhe. Estava ainda mais branco, mais trágico, e parecia aborrecido com o desinteresse do enfermeiro:
— Ordeno-te que vás por esse país fora e digas a todos os homens que se preparem para um mundo novo. Os brancos vão partir e os pretos ocuparão as casas, os palácios, as igrejas e os quartéis, e a liberdade há de reinar para sempre.
Dizendo isto sacudiu as asas e as suas penas espalharam-se pelo quarto:
10 — Com estas minhas penas hás de curar os enfermos
— disse o pássaro —, e assim até os mais incrédulos acreditarão em ti e seguirão os teus passos.
Quando Justo Santana despertou o quarto brilhava com o esplendor das penas. Na manhã desse mesmo dia o enfermeiro serviu-se de uma delas para curar um homem com elefantíase e à tardinha devolveu a vista a um cego. Passado apenas um mês a sua fama de santo e milagreiro já se espalhara muito para além das margens do Rio Zaire e à porta da sua casa ia crescendo uma multidão de padecentes. [...]
Justo Santana colocava na boca dos enfermos uma pena do pássaro, como se fosse uma hóstia, e estes imediatamente ganhavam renovado alento. Enquanto fazia isto o enfermeiro repetia os discursos do pássaro, incapaz de compreender a fúria daquelas palavras e o alcance delas. Todas as noites sonhava com a ave e todas as noites esta o forçava a decorar um discurso novo, após o que sacudia as asas, espalhando pelo ar morto do quarto as penas milagrosas:
— Se esse pássaro continuar assim tão generoso — disse Justo Santana à mulher —, ainda o veremos transformado numa alma despenada.
Isto durou um ano. Então, numa manhã de cacimbo1, apareceram quatro soldados à porta da casa, afastaram com rancor a multidão de desvalidos, e levaram Justo Santana. O infeliz foi acusado de fomentar o terrorismo e a sublevação, e desterrado para uma praia remota, em pleno deserto do Namibe, onde passou a exercer o ofício de faroleiro.
15 Quando o encontrei, muitos anos depois, em Luanda 2, ele falou-me desse desterro com nostalgia:
— Foi a melhor época da minha vida.
Encontrei-o doente, estendido numa larga cama de ferro sob lençóis muito brancos. No quarto havia apenas a cama e um pequeno crucifixo preso à parede. Na sala ao lado os devotos rezavam murmurosas ladainhas. Aquela era a sede da Igreja do Divino Espírito. Não tinha sido nada fácil chegar até junto do enfermeiro: os seus seguidores guardavam-no corno a uma relíquia — na verdade, mantinham-no preso ali, naquele quarto, quase isolado do mundo, desde 1975.3
A melhor época da vida de Justo Santana terminou de forma trágica, numa noite de tempestade, quando um bando de aves migratórias caiu sobre o farol. Enlouquecidas pela luz as avezinhas batiam contra o cristal até quebrarem as asas, sendo depois arrastadas pelo vento. Isto está sempre a acontecer. Milhares de aves migratórias morrem todos os anos traídas pelo fulgor dos faróis. Naquela noite, desrespeitando as normas, Justo Santana foi em socorro das aves e desligou o farol. Teve pouca sorte: um barco com tropas, de regresso à metrópole, perdeu-se na escuridão e encalhou na praia. Dessa vez o enfermeiro foi julgado, condenado a quinze anos de prisão, e enviado para o Tarrafal,4 em Cabo Verde. Foi solto com a Revolução de Abril5 e regressou a Angola.
Quando o visitei, antes de me ir embora, quis saber se o pássaro ainda lhe frequentava os sonhos. Ele olhou em redor para se certificar de que estávamos sozinhos:
20 — Estrangulei-o — segredou com um sorriso cúmplice —, mas enquanto eu for vivo não conte isto a ninguém.
(Rita Chaves (org.).
Contos africanos dos países de língua portuguesa, 2009.)


1cacimbo: estação com elevado índice de umidade caracterizada pela descida gradual da temperatura e pelo aumento da nebulosidade.
2 Luanda: capital de Angola.
3 Angola tornou-se um país independente em 1975.
4 Tarrafal: antiga colônia penal portuguesa.
5 Ocorrida em 25 de abril de 1974, a Revolução de Abril, também conhecida como Revolução dos Cravos, restabeleceu a democracia em Portugal, abrindo caminho para o processo de descolonização dos países da África.


 
Observa-se o emprego de palavra formada com prefixo que exprime ideia de negação no trecho:
a) “assim até os mais incrédulos acreditarão em ti e seguirão os teus passos” (10⁠º parágrafo).
b) “um barco com tropas, de regresso à metrópole, perdeu-se na escuridão e encalhou na praia” (18⁠º parágrafo).
c) “homem simples, tímido, avesso a confrontos, e sem qualquer vocação para a política” (5⁠º parágrafo).
d) “Não tinha sido nada fácil chegar até junto do enfermeiro” (17⁠º parágrafo).
e) “A mulher quis saber que espécie de pássaro, mas Justo Santana não foi capaz de precisar” (3⁠º parágrafo).

Veja outras questões semelhantes:

UNESP s. port 2006 – Questão 79
Indique a alternativa correta, de acordo com o texto 2. ...
UNESP 2008 – Questão 27
As previsões de especialistas para 2015 projetam que cerca de 33 cidades do mundo terão, pelo menos, 8 milhões de habitantes ocupando 0,4% da área do planeta.Assinale a alternativa que contém o processo descrito e alguns impactos ambientais...
UNESP 2016 – Questão 4
No sermão, o autor recorre a uma construção que contém um aparente paradoxo em: a) “o mal é que se perdem a si e perdem a todos” (3.o parágrafo) b) “os piores perdem-se pelo que deixam de fazer, que estes são os piores” (3.o parágrafo) c) “Desçamos a exemplos mais públicos.” (2.o parágrafo) d) “Oh que arriscado ofício é o dos príncipes e o dos ministros!” (2.o parágrafo) e) “A omissão é um pecado que se faz não fazendo.” (2.o parágrafo)
UNESP 2009 – Questão 3
Durante o ano letivo, um professor de matemática aplicou cinco provas para seus alunos. A tabela apresenta as notas obtidas por um determinado aluno em quatro das cinco provas realizadas e os pesos estabelecidos pelo professor para cada prova. Se o aluno foi aprovado com média final ponderada igual a 7,3, calculada entre as cinco provas, a nota obtida por esse aluno na prova IV foi: a) 9,0. b) 8,5. c) 8,3. d) 8,0. e) 7,5.
UNESP (julho) 2010 – Questão 52
Observe o mapa. ...