As esperanças
Uma esperança entrou em meu quarto1. Trouxeram-me o pequeno corpo vegetal, quase imobilizado pelo medo, como se fosse um sinal de próxima vitória minha. Pedi que devolvessem a “esperança” ao seu meio, que a salvassem imediatamente. Depois, fechei os olhos e revi o mundo de esperanças que me veio acompanhando da infância até aqui: os relvados de outrora, e o reino de grilos, das “esperanças”, dos louva-a-deus. Sobre o meu peito se estendeu uma espécie de campo verde, longo, contínuo. Tive a sensação de que fora sempre uma árvore e que me percorriam pequenos corpos vegetais.
(...)
Começo a brincar com a palavra esperança2. “Já não é mais a hora de esperança3”, digo-me eu. “Esperança em quê?4” Ouço então uma voz que me diz: “Encontrarás, do outro lado da Terra, uma grande e amena extensão relvada, onde poderás dormir com a tranquilidade que nunca encontraste aqui. As ‘esperanças’ velarão pelo teu sono e pelo ritmo de todas as coisas. Quando se acaba o mundo de desesperanças, se inicia o tempo das esperanças. Não demores em dormir o teu sono final. Não insistas em ficar pensando insone. Do outro lado há um sono, como um pálio* aberto5. Dorme-se quando se espera, quando há esperança; ou quando a vida se tornou idêntica à própria morte, e as ‘esperanças’ bóiam nas águas estagnadas e são corpos defuntos conduzidos ao léu, ao capricho dos ventos espessos”.
Mas a “esperança” que entrou no meu quarto falou-me também com insistência, em presença terrestre, em vitória neste mundo, em recuperação floral, em sol, em leite, em campo, em olhos, em mel, em estradas, em encontros julgados já impossíveis e que inesperadamente se realizam, quando tudo convidava a desesperar.
Meu Deus - a “esperança” me chamou a atenção para o mundo terrestre, mas não para o reino em que vivi até agora e onde acabei apenas existindo, vergado pelo tédio, pelo “já visto”, pelo desgosto de mim mesmo e dos outros. A “esperança” trouxe-me a imagem de dias verdes e leves, das coisas tocadas pela poesia. O olhar de sono depois das vindimas*; as mãos álacres* e febris; o riso das malícias inocentes. Oh! Este mundo é o mundo em que habito, mas não é mais o meu mundo.
Uma pálpebra longa e dolorosa começa a cerrar-se por sobre todas as coisas belas, primaveris. Através das janelas fechadas entra um fio de sol de fim de tarde. Quem bate no peito e reza no coro de vozes longas? É o vento, é a noite, é a montanha habitada pelos espíritos. A pequena “esperança” é o contrário de tudo isso. É o espírito inocente. É a pequena vida. É o sorriso. É tudo ou nada.
De quando em quando, antigamente, achávamos uma “esperança” parecida com o pedaço de uma folha de árvore6. Leve, disfarçada, quieta, dissimulada. “Esse bicho é um louva-a-deus. E de parreira...”
Agora veio a sombra. Mas a esperança está cantando. Deus meu, que voz triste essa que me convida a viver!
AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT
Mey, Leticia et. al (org). Saudade de mim mesmo:
uma anotologia de prosa de Augusto Frederico Schmidt
São Paulo: Globo, 2006.
Vocabulário:
*pálio – manto
*vindimas – colheitas das uvas
*álacres – entusiasmadas, alegres
No segundo parágrafo do texto, a narrativa traz o ponto de vista de uma outra voz, diferente da do narrador.
O objetivo da utilização desse recurso é:
a) inspirar medo ao leitor
b) estabelecer desequilíbrio na narrativa
c) oferecer uma alternativa ao narrador
d) contrariar um argumento de autoridade