A raposa e as uvas
(Casa de Xantós, em Samos. Entradas à D., E., e F. Um gongo. Uma mesa. Cadeiras. Um “clismos*”. Pelo pórtico, ao fundo, vê-se o jardim. Estão em cena Cleia, esposa de Xantós, e Melita, escrava. Melita penteia os cabelos de Cleia.)
MELITA: — (Penteando os cabelos de Cleia.) Então Rodópis contou que Crisipo reuniu os discípulos na praça, apontou para o teu marido e exclamou: “Tens o que não perdeste”. Xantós respondeu: “É certo”. Crisipo continuou: “Não perdeste chifres”. Xantós concordou: “Sim”. Crisipo finalizou: “Tens o que não perdeste; não perdeste chifres, logo os tens”. (Cleia ri.) Todos riram a valer.
CLEIA: — É engenhoso. É o que eles chamam sofisma. Meu marido vai à praça para ser insultado pelos outros filósofos?
MELITA: Não; Xantós é extraordinariamente inteligente... No meio do riso geral, disse a Crisipo: “Crisipo, tua mulher te engana, e no entanto não tens chifres: o que perdeste foi a vergonha!” E aí os discípulos de Crisipo e os de Xantós atiraram-se uns contra os outros...
CLEIA: — Brigaram? (Assentimento de Melita.) Como é que Rodópis soube disto?
MELITA: — Ela estava na praça.
CLEIA: — Vocês, escravas, sabem mais do que se passa em Samos do que nós, mulheres livres...
MELITA: — As mulheres livres ficam em casa. De certo modo são mais escravas do que nós.
CLEIA: — É verdade. Gostarias de ser livre?
MELITA: — Não, Cleia. Tenho conforto aqui, e todos me consideram. É bom ser escrava de um homem ilustre como teu marido. Eu poderia ter sido comprada por algum mercador, ou algum soldado, e no entanto tive a sorte de vir a pertencer a Xantós.
CLEIA: — Achas isto um consolo?
MELITA: — Uma honra. Um filósofo, Cleia!
CLEIA: — Eu preferia que ele fosse menos filósofo e mais marido. Para mim os filósofos são pessoas que se encarregam de aumentar o número de substantivos abstratos.
MELITA: — Xantós inventa muitos?
CLEIA: — Nem ao menos isto. E aí é que está o trágico: é um filósofo que não aumenta o vocabulário das controvérsias. Já terminaste?
MELITA: — Quase. É bom pentear teus cabelos: meus dedos adquirem o som e a luz que eles têm. Xantós beija os teus cabelos? (Muxoxo de Cleia.) Eu admiro teu marido.
CLEIA: — Por que não dizes logo que o amas? Gostarias bastante se ele me repudiasse, te tornasse livre e se casasse contigo...
MELITA: — Não digas isto... Além do mais, Xantós te ama...
CLEIA: — À sua maneira. Faço parte dos bens dele, como tu, as outras escravas, esta casa...
MELITA: — Sempre que viaja te traz presentes.
CLEIA: — Não é o amor que leva os homens a dar presentes às esposas: é a vaidade; ou o remorso.
MELITA: — Xantós é um homem ilustre.
CLEIA: — É o filósofo da propriedade: “Os homens são desiguais: a cada um toca uma dádiva ou um castigo”. É isto democracia grega... É o direito que o povo tem de escolher o seu tirano: é o direito que o tirano tem de determinar: deixo-te pobre; faço-te rico; deixo-te livre; faço-te escravo. É o direito que todos têm de ouvir Xantós dizer que a injustiça é justa, que o sofrimento é alegria, e que este mundo foi organizado de modo a que ele possa beber bom vinho, ter uma bela casa, amar uma bela mulher. Já terminaste?
MELITA: — Um pouco mais, e ainda estarás mais bela para o teu filósofo.
CLEIA: — O meu filósofo... Os filósofos são sempre criaturas cheias demais de palavras...
(*) Espécie de cama para recostar-se.
(Guilherme Figueiredo. Um deus dormiu lá em casa, 1964.)