UERJ 2015 – Questão 5

Linguagens / Português
O ARRASTÃO
 
Estarrecedor, nefando, inominável, infame. Gasto logo os adjetivos porque eles fracassam em dizer o sentimento que os fatos impõem. Uma trabalhadora brasileira, descendente de escravos, como tantos, que cuida de quatro filhos e quatro sobrinhos, que parte para o trabalho às quatro e meia das manhãs de todas as semanas, que administra com o marido um ganho de mil e seiscentos reais, que paga pontualmente seus carnês, como milhões de trabalhadores brasileiros, é baleada em circunstâncias não esclarecidas no Morro da Congonha e, levada como carga no porta-malas de um carro policial a pretexto de ser atendida, é arrastada à morte, a céu aberto, pelo asfalto do Rio.
Não vou me deter nas versões apresentadas pelos advogados dos policiais. Todas as vozes terão que ser ouvidas, e com muita atenção à voz daqueles que nunca são ouvidos. Mas, antes das versões, o fato é que esse porta-malas, ao se abrir fora do script, escancarou um real que está acostumado a existir na sombra.
O marido de Cláudia Silva Ferreira disse que, se o porta-malas não se abrisse como abriu (por obra do acaso, dos deuses, do diabo), esse seria apenas “mais um caso”. Ele está dizendo: seria uma morte anônima, aplainada1 pela surdez da praxe2 , pela invisibilidade, uma morte não questionada, como tantas outras.
É uma imagem verdadeiramente surreal, não porque esteja fora da realidade, mas porque destampa, por um “acaso objetivo” (a expressão era usada pelos surrealistas3 ), uma cena recalcada4 da consciência nacional, com tudo o que tem de violência naturalizada e corriqueira, tratamento degradante dado aos pobres, estupidez elevada ao cúmulo, ignorância bruta transformada em trapalhada transcendental5 , além de um índice grotesco de métodos de camuflagem e desaparição de pessoas. Pois assim como Amarildo6 é aquele que desapareceu das vistas, e não faz muito tempo, Cláudia é aquela que subitamente salta à vista, e ambos soam, queira-se ou não, como o verso e o reverso do mesmo.
O acaso da queda de Cláudia dá a ver algo do que não pudemos ver no caso do desaparecimento de Amarildo. A sua passagem meteórica pela tela é um desfile do carnaval de horror que escondemos. Aquele carro é o carro alegórico de um Brasil, de um certo Brasil que temos que lutar para que não se transforme no carro alegórico do Brasil.
José Miguel Wisnik Adaptado de oglobo.globo.com
, 22/03/2014. 5 10 15 20 25
 
aplainada − nivelada
praxe − prática, hábito
surrealistas − participantes de movimento artístico do século 20 que enfatiza o papel do inconsciente
recalcada − fortemente reprimida
5 transcendental − que supera todos os limites
6 Amarildo − pedreiro desaparecido na favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, em 2013, depois de ser detido por policiais.
Ele está dizendo: seria uma morte anônima, aplainada pela surdez da praxe, pela invisibilidade, uma morte não questionada, como tantas outras.
(l. 14-16)
Logo após citar a declaração do marido de Cláudia, o autor a explica. Em relação a essa declaração, a explicação do autor produz o efeito de:
a) enfatizar seu conteúdo.
b) corrigir sua construção.
c) enumerar seus detalhes.
d) contrapor-se a sua simplicidade.

Veja outras questões semelhantes:

UERJ 2009 – Questão 17
The text presents a comparative analysis of political involvement in different decades. According to Carroll, the conflicting attitude between youth generations of the 1960s and of today is expressed in the following statement: a) effective activism is attainable with political support b) traditional institutions are conscious of political needs c) community engagement is sustained by political action d) cooperative actions are dependent on political organizations
INSPER 2 2013 – Questão 4
No último parágrafo, a língua é comparada a um armazém de secos e molhados porque, tal como nesse tipo de estabelecimento comercial, ela a) oferece formas “customizadas”. b) apresenta caráter conservador. c) permite fazer permutas. d) é elitizada, acessível a poucas pessoas. e) comporta variedade de opções.
Albert Einstein 2017 – Questão 48
Segundo o texto, as causas que estão na base da violência à saúde ...
FGV 2012 – Questão 28
Segundo o narrador, a avareza é uma exageração de uma determinada virtude. Trata-se da a) prodigalidade. b) parcimônia. c) humildade. d) paciência. e) piedade.
UERJ 2005 – Questão 16
The author organizes her ideas in the text in a schematic way that consists of: a) introducing the writer’s point of view first and then the reader’s perspective b) shifting the focus from the reader to the writer and finally back to the reader c) describing the writer’s attributions and the reader’s perceptions simultaneously d) drawing the attention to the effects of seduction among writers and the reactions from readers