Como e porque sou romancista
Minha mãe e minha tia se ocupavam com trabalhos de costuras, e as amigas para não ficarem ociosas as ajudavam. Dados os primeiros momentos à conversação, passava-se à leitura e era eu chamado ao lugar de honra1.
Muitas vezes, confesso, essa honra me arrancava bem a contragosto de um sono começado ou de um folguedo querido; já naquela idade a reputação é um fardo e bem pesado2.
Lia-se até a hora do chá, e tópicos havia tão interessantes que eu era obrigado à repetição. Compensavam esse excesso, as pausas para dar lugar às expansões do auditório, o qual desfazia-se em recriminações contra algum mau personagem, ou acompanhava de seus votos e simpatias o herói perseguido.
Uma noite, daquelas em que eu estava mais possuído do livro, lia com expressão uma das páginas mais comoventes da nossa biblioteca3. As senhoras, de cabeça baixa, levavam o lenço ao rosto, e poucos momentos depois não puderam conter os soluços que rompiam-lhes o seio4.
Com a voz afogada pela comoção e a vista empanada pelas lágrimas, eu também cerrando ao peito o livro aberto, disparei em pranto e respondia com palavras de consolo às lamentações de minha mãe e suas amigas.
Nesse instante assomava à porta um parente nosso, o Revd.º Padre Carlos Peixoto de Alencar, já assustado com o choro que ouvira ao entrar – Vendo-nos a todos naquele estado de aflição5, ainda mais perturbou-se:
- Que aconteceu? Alguma desgraça? Perguntou arrebatadamente.
As senhoras, escondendo o rosto no lenço para ocultar do Padre Carlos o pranto e evitar seus remoques*, não proferiram palavra. Tomei eu a mim responder:
- Foi o pai de Amanda que morreu! Disse, mostrando-lhe o livro aberto.
Compreendeu o Padre Carlos e soltou uma gargalhada6, como ele as sabia dar, verdadeira gargalhada homérica, que mais parecia uma salva de sinos a repicarem do que riso humano. E após esta, outra e outra, que era ele inesgotável, quando ria de abundância de coração, com o gênio prazenteiro de que a natureza o dotara.
Foi essa leitura contínua e repetida de novelas e romances que primeiro imprimiu em meu espírito a tendência para essa forma literária [o romance] que é entre todas a de minha predileção?
Não me animo a resolver esta questão psicológica, mas creio que ninguém contestará a influência das primeiras impressões7.
JOSÉ DE ALENCAR
Como e porque sou romancista. Campinas: Pontes, 1990.
*remoque: zombaria, caçoada
Na composição das suas memórias, o escritor José de Alencar relaciona indiretamente sua infância a questões da vida adulta.
Essa relação entre a memória da infância e uma reflexão sobre o presente está mais claramente estabelecida em:
a) passava-se à leitura e era eu chamado ao lugar de honra. (ref.1)
b) já naquela idade a reputação é um fardo e bem pesado. (ref.2)
c) lia com expressão uma das páginas mais comoventes da nossa biblioteca. (ref. 3)
d) mas creio que ninguém contestará a influência das primeiras impressões. (ref.7)