Os franceses, no século XIX, se valeram da palavra inglesa spleen para nomear a melancolia, o sentimento depressivo. O cronista Rubem Braga era um mestre na expressão desse sentimento, ao qual, nesta crônica, opôs o da vivacidade, ou, para usar
outra expressão inglesa, o de struggle for life:
“Daquela pequena conversa triste no bar, em que dissemos as coisas mais desesperadamente banais, saímos, os dois, com uma espécie de amor raivoso à vida, ciúme e pressa da vida.
Volto para casa. Estou cansado e tenho motivo já não digo para estar triste, mas, vamos dizer, aborrecido. Mas me distraio olhando o passarinho que trouxe da roça. Não é bonito e canta pouco, esse bicudo que ainda não fez a segunda muda. Mas o que é fascinante, nele, o que me prende a ele, é sua vida, sua vitalidade inquieta, ágil, infatigável, seu apetite, seu susto, a reação instantânea com que abre o bico, zangado, quando o ameaço com a mão. Ele está tomando banho e se sacode todo, salta, muda de poleiro, agita as penas – e me vigia de lado, com um olhinho escuro e vivo.
Mudo-lhe a água do bebedouro, jogo-lhe pedrinhas de calcita que ele gosta de trincar. E me sinto bem com essa presença viva que não me compreende, mas que sente em mim um outro bicho, amigo ou inimigo, uma outra vida. Ele não sabe da morte, não a espera nem a teme – e a desmente em cada vibração de seu pequeno ser ávido e inquieto. Meu bicudo é um grande companheiro e irmão, e, na verdade, muito me ajuda.”
(Adaptado de: BRAGA, Rubem. Recado de primavera. Rio de Janeiro:
Record, 1984, p. 156)
As normas de concordância verbal estão plenamente observadas na frase:
a) Diante das reações do bicudo reanimavam-se, nas palavras do cronista, sua disposição para o que vale a pena viver.
b) Depreende-se que das palavras difíceis que trocou o casal restaram alguns duros e talvez permanentes rancores.
c) O que mais prendia o autor ao seu passarinho era as demonstrações vitais que se expressava em cada atitude do bicudo.
d) O fato de não ser bonito e bom cantor pouco ou nada significavam para o cronista, preso à viva companhia do passarinho.
e) Às tumultuadas e nervosas conversas de bar costumam seguir a sensação de que muito do que foi dito pautou-se por injustas acusações.