FUVEST 2011 – Questão 72

Linguagens / Literatura / Romantismo / Brasil: Prosadores
Todo o barbeiro é tagarela, e principalmente quando tem pouco que fazer; começou portanto a puxar conversa com o freguês. Foi a sua salvação e fortuna.
O navio a que o marujo pertencia viajava para a Costa e ocupava-se no comércio de negros; era um dos combóis que traziam fornecimento para o Valongo, e estava pronto a largar.
—Ó mestre! disse o marujo no meio da conversa, você também não é sangrador?
—Sim, eu também sangro...
—Pois olhe, você estava bem bom, se quisesse ir conosco... para curar a gente a bordo1; morre-se ali que é uma praga.
—Homem2, eu da cirurgia não entendo muito3...
—Pois já não disse que sabe também sangrar?
—Sim...
—Então já sabe até demais.
No dia seguinte saiu o nosso homem4 pela barra fora: a fortuna5 tinha-lhe dado o meio, cumpria sabê-lo aproveitar; de oficial de barbeiro dava um salto mortal a médico de navio negreiro; restava unicamente saber fazer render a nova posição. Isso ficou por sua conta.
Por um feliz acaso logo nos primeiros dias de viagem adoeceram dois marinheiros; chamou-se o médico; ele fez tudo o que sabia... sangrou os doentes, e em pouco tempo estavam bons, perfeitos. Com isto ganhou imensa reputação, e começou a ser estimado.
Chegaram com feliz viagem ao seu destino; tomaram o seu carregamento de gente, e voltaram para o Rio. Graças à lanceta do nosso homem6, nem um só negro morreu, o que muito contribuiu para aumentar-lhe a sólida reputação de entendedor do riscado.
(Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um sargento de milícias.)
Neste trecho, em que narra uma cena relacionada ao tráfico de escravos, o narrador não emite julgamento direto sobre essa prática. Ao adotar tal procedimento, o narrador 
a) revela-se cúmplice do mercado negreiro, pois fica subentendido que o considera justo e irrepreensível.
b) antecipa os métodos do Realismo Naturalismo, o qual, em nome da objetividade, também abolirá os julgamentos de ordem social, política e moral.
c) prefigura a poesia abolicionista de Castro Alves, que irá empregá-lo para melhor expor à execração pública o horror da escravidão.
d) contribui para que se constitua a atmosfera de ausência de culpa que caracteriza a obra.
e) mostra-se consciente de que a responsabilidade pelo comércio de escravos cabia, principalmente, aos próprios africanos, e não ao tráfico negreiro.
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