FMABC 2018 – Questão 8

Linguagens / Português
Um filme nacional de 2003 − Os narradores de Javé, de Eliane Caffé − mostra um vilarejo fictício ameaçado de ser inundado por uma grande represa. Pobres e esquecidos por todos, seus habitantes não sabem como se defender, até que uma voz parece encontrar a solução: Javé precisa ser reconhecida como “patrimônio”, pois assim não se tornaria uma cidade submersa. Duas dimensões dessa fala merecem ser assinaladas: “patrimônio” aparece como um recurso e uma reivindicação; a palavra, enuncia da naquela específica cena, evidencia o quanto deixou há muito de ser um termo técnico, especializado, vinculado a um saber e a uma política formal, para se tornar um lugar-comum; em uma metáfora poderosa, submersão equivale a esquecimento e a não reconhecimento: a reivindicação de posse de um patrimônio é uma demanda de visibilidade. Desprovidos de recursos materiais que pudessem ser considerados de valor histórico, os narradores de Javé só podem recordar e reinventar suas histórias, seu mito de fundação, um patrimônio que hoje chamamos imaterial, ou intangível.
O termo “patrimônio”, do latim pater, pai, tornou-se corriqueiro e sua adjetivação se espraiou: patrimônio pode ser histórico, ambiental, arqueológico, artístico, material, imaterial etc., qualificações comumente subsumidas sob o guarda-chuva “cultural”. A remissão a pai, patriarca, nos conduz a legado, herança − e não por acaso o termo em inglês é exatamente este: heritage.
No filme citado não bastava reconhecer algo importante: era preciso escrever, anotar, identificar – e passar adiante. Esse conjunto de práticas é o que pode transmutar os relatos, as estórias passadas em conversas informais e os costumes em “patrimônio” − da cidade, de um grupo, região ou nação. Patrimônio não é uma representação coletiva como outra qualquer, e sim uma prática constituída por um processo de atribuição de um valor, que deve ser reconhecido por um grupo disposto a conservá-lo. Em outras palavras, patrimônio histórico remete a políticas públicas ou a ações que têm lugar na esfera pública.
Os grupos sociais atribuem valores distintos aos seus bens materiais, suas memórias, suas marcas territoriais; nomeiam − e desse modo distinguem, classificam − o ambiente que os rodeia, destacam passagens de sua história comum, de um passado coletivo, elegem paisagens. Por isso, quando falamos em patrimônio (histórico, cultural etc.), é disso que se trata: de um conjunto de bens materiais ou ima teriais fruto de uma decisão que partiu da identificação de algo que merecia ser destacado, retirado de certo fluxo corriqueiro das coisas, da rotina cotidiana: um bem tido como especial. A esse bem chama-se bem patrimonial.
O termo é hoje lugar-comum, em duplo sentido: é corriqueiro, parece estar no discurso de todos, mas pode ser também um lugar compartilhado, um ponto de encontro de saberes, disciplinas e políticas. Contudo, não estamos diante de um fenômeno universal, tampouco permanente. Na França, preocupações com patrimônio ou, para usar um termo então utilizado, com monumentos tiveram início após a Revolução Francesa; na Inglaterra, em meio à Revolução Industrial, vitorianos que denunciavam uma civilização moderna percebida como sem raízes se voltavam para um passado préindustrial, localizado na arquitetura. No Brasil, a descoberta de um patrimônio na iminência de ser perdido não se vinculou a revolução de qualquer tipo: foi um debate que teve início na nada revolucionária Primeira República (1889-1930), quando cidades passavam por reformas urbanas pautadas por um “bota abaixo”− como ocorreu no Rio de Janeiro e no Recife no começo do século XX −, e consolidou-se no Estado Novo.
Adaptado de: RUBINO, Silvana. Patrimônio: história e memória como reivindicação e recurso. In:Agenda bra sileira: temas de uma sociedade em mudança . Orgs. André Botelho, Lilia Moritz Schwarcz. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 392 e 393)
 
Levando em conta o parágrafo 5, observa-se com correção:
a) Se a palavra lugar-comum estivesse empregada no plural, a forma correta a ser empregada seria “lugares comum”.
b) No segmento em meio à Revolução Industrial, o sinal indicativo da crase está corretamente empregado, mas não estaria se a formulação fosse “em meio àquilo que se chamou de Revolução Industrial”.
c) A conjunção Contudo expressa ideia de restrição.
d) No contexto em que aparece, a palavra tampouco não está empregada como reforço de uma negação.
e) A vírgula depois da palavra compartilhado exerce função equivalente à função que exerceria a conjunção e ao ligar dois segmentos de idêntica função sintática na frase.

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