A noite, um patrimônio que corre risco
UNESCO foi solicitada para fazer da 'escuridão' patrimônio da humanidade
Leocádio Benez Neto
Já estava na hora: os políticos começam, enfim, a legislar sobre o céu noturno. A República Checa aprovou uma lei visando proteger e restaurar o céu noturno, tão ofuscado pelas potentes iluminações artificiais. Respira-se fundo: a noite é “um monumento que corre risco”. Além disso, a UNESCO foi solicitada a fazer da noite “patrimônio da humanidade”. Nada mais legítimo. Basta levantar o nariz para o céu para avaliar a amplitude dos estragos: nossas noites são ruínas, monumentos praticamente demolidos.
É evidente que nos países desenvolvidos as devastações são as mais desastrosas. Na Europa, a metade da população não tem mais como ver a Via Láctea, aquele rastro luminoso, composto por bilhões de estrelas que compõem a galáxia. Oitenta por cento dos americanos jamais viu1 uma noite, eu digo, uma verdadeira noite, uma noite escura, o infinito vazio da escuridão da noite, repleto de estrelas, nebulosas e outros corpos celestes. Dois terços dos europeus encontram-se na mesma situação.
Sabemos muito bem as causas desse enorme “acidente industrial”: a tecnologia, os sistemas de iluminação noturna, que são bem mais potentes do que seria necessário. Ao irradiarem luz diretamente para o céu, desperdiçando2 grande quantidade da escassa energia elétrica. Toda noite, todas as cidades (e mesmo os povoados) da terra – sobretudo no Ocidente – fazem jorrar ondas de luz inútil, que instalam acima de nós “raios luminosos”, que destroem a visão da noite.
Hoje, com a lei decretada pela República Checa, os amantes da noite marcam uma vitória. Essa revolução é considerável. Não obedece a considerações poéticas, mas principalmente a motivos de ordem prática3: a comunidade mundial dos astrônomos se mobilizou contra os “poluidores da noite”, pois cada vez mais eles têm dificuldades para exercer sua profissão.
Escuridão – A atmosfera terrestre está tão saturada de luminosidades de todos os tipos, que os grandes observatórios têm cada vez mais problemas para pesquisar as profundezas do céu na escuridão absoluta, decifrando os sutis movimentos e o pulsar de distantes corpos celestes.
Além da astronomia, algumas almas um tanto sonhadoras juntam suas dores às desses cientistas4: a noite é uma das mais antigas companheiras dos homens. Quantos mitos cosmogônicos ou familiares relatam o medo ou o encantamento que moldou os cérebros dos homens diante da sucessão de luzes e sombras – o azul e o verde fluido da aurora, as fontes de água douradas do meio do dia, o buraco infinito da escuridão da noite? Ora, a noite, perseguida pelos arcos elétricos, pelos bilhões de globos de nossas cidades, foi abatida. Esforçam-se em vão a procurá-la, ela sumiu.
Mal percebemos essa debandada, essa derrota de nossas noites. Estamos tão acostumados com nossa eletricidade, com os lampiões nas ruas, com o efeito de uma nuvem de poeira que a iluminação artificial produz, que muitos nem mais se lembram da noite.
Os deputados checos que dedicam tempo para salvar a noite me parecem verdadeiros governantes. Eles se ocupam do essencial. “Nem só de pão vive o homem”, diz o Evangelho e, hoje, estamos tentados a dizer: “Os homens vivem também das noites”.
Jornal O Estado de S. Paulo. (adaptado)
Qual dos comentários NÃO se ajusta à leitura do texto?
a) No parágrafo inicial, é feita uma apreciação positiva tanto da iniciativa dos políticos checos quanto da solicitação feita à UNESCO.
b) No segundo e terceiro parágrafos, o leitor encontra evidências, dados de que a noite é um patrimônio que corre risco (título).
c) Com a escolha de estragos, ruínas, acidente industrial, poluidores da noite, reforça-se a ideia de que a iluminação artificial noturna deve ser combatida.
d) No texto, há referência a uma categoria profissional que seria prejudicada, caso a escuridão noturna fosse restituída, pois Os homens vivem também das noites.
e) No sétimo parágrafo, há um período composto explorando a relação causa-consequência estabelecida entre iluminação artificial e prejuízo decorrente da escassa escuridão noturna.