UFSCar - Por e Ing 2006 – Questão 6

Linguagens / Português / Narração / Características da narrativa
Suponha o leitor que possuía duzentos escravos no dia 12 de maio e que os perdeu com a lei de 13 de maio.
Chegava eu ao seu estabelecimento e perguntava-lhe:
 — Os seus libertos ficaram todos?          
— Metade só; ficaram cem. Os outros cem dispersaram-se; consta-me que andam por Santo Antônio de Pádua.
— Quer o senhor vender-mos?          
Espanto do leitor; eu, explicando:         
— Vender-mos todos, tanto os que ficaram, como os que fugiram.          
O leitor assombrado:          
— Mas, senhor, que interesse pode ter o senhor...     — Não lhe importe isso. Vende-mos?          
— Libertos não se vendem.          
— É verdade, mas a escritura de venda terá a data de 29 de abril; nesse caso, não foi o senhor que perdeu os escravos, fui eu. Os preços marcados na escritura serão os da tabela da lei de 1885; mas eu realmente não dou mais de dez mil-réis por cada um.          
Calcula o leitor:          
— Duzentas cabeças a dez mil-réis são dous contos. Dous contos por sujeitos que não valem nada, porque já estão livres, é um bom negócio.          
Depois refletindo:          
— Mas, perdão, o senhor leva-os consigo?         
— Não, senhor: ficam trabalhando para o senhor; eu só levo a escritura.          
— Que salário pede por eles?          
— Nenhum, pela minha parte, ficam trabalhando de graça. O senhor pagar-lhes-á o que já paga.           Naturalmente, o leitor, à força de não entender, aceitava o negócio. Eu ia a outro, depois a outro, depois a outro, até arranjar quinhentos libertos, que é até onde podiam ir os cinco contos emprestados; recolhia-me a casa e ficava esperando.          
Esperando o quê? Esperando a indenização, com todos os diabos! Quinhentos libertos, a trezentos mil-réis, termo médio, eram cento e cinqüenta contos; lucro certo: cento e quarenta e cinco.
 (Machado de Assis, Crônica escrita em 26.06.1888. 
Obra Completa.)
Na minha opinião, existe no Brasil, em permanente funcionamento, não fechando nem para o almoço, uma Central Geral de Maracutaia. Não é possível que não exista. E, com toda a certeza, é uma das organizações mais perfeitas já constituídas, uma contribuição inestimável do nosso país ao patrimônio da raça humana. Nada de novo é implantado sem que
surja no mesmo instante, às vezes sem intervalo visível, imediatamente mesmo, um esquema bem montado para fraudar o que lá seja que tenha sido criado. [...] Exemplo mais recente ocorreu em São Paulo, mas podia ser em qualquer outra cidade do país, porque a CGM é onipresente, não deixa passar nada, nem discrimina ninguém. Segundo me contam aqui, a prefeitura de São Paulo agora fornece caixão e enterro gratuitos para os doadores de órgãos, certamente os mais pobres. Basta que a família do morto prove que ele doou pelo menos um órgão, para receber o benefício. Mas claro, é isso mesmo, você adivinhou, ser brasileiro é meramente uma questão de prática. Surgiram indivíduos ou organizações que, mediante uma módica contraprestação pecuniária, fornecem documentação falsa, “provando” que o defunto doou órgãos, para que o caixão e o enterro sejam pagos com dinheiro público.
(João Ubaldo Ribeiro. O Estado de S.Paulo, 18.09.2005.)
 
A relação que se pode estabelecer entre este texto e o primeiro, de Machado de Assis, é:
a) nos dois, os seres humanos são tratados com reverência.
b) os dois textos falam de compras a prazo.
c) no primeiro texto, temos um editorial e, no segundo, uma crônica.
d) ambos tratam de falcatruas e, em ambos, o leitor é evocado pelo narrador.
e) os dois textos referem ações de astúcia, sem que haja dolo.

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