Nosso pensamento, como toda entidade viva, nasce para se vestir de fronteiras. Essa invenção é uma espécie de vício de arquitetura, pois não há infinito sem linha do horizonte. A verdade é que a vida tem fome de fronteiras. Porque essas fronteiras da natureza não servem apenas para fechar. Todas as membranas orgânicas são entidades vivas e permeáveis. 1São fronteiras feitas para, ao mesmo tempo, delimitar e negociar: o “dentro” e o “fora” trocam-se por turnos.
Um dos casos mais notáveis na construção de fronteiras acontece no mundo das aves. É o caso do nosso tucano, o tucano africano, que fabrica o ninho a partir do oco de uma árvore. 2Nesse vão, a fêmea se empareda literalmente, erguendo, ela e o macho, um tapume de barro. 3Essa parede tem apenas um pequeno orifício, ele é a única janela aberta sobre o mundo. Naquele cárcere escuro, a fêmea arranca as próprias penas para preparar o ninho das futuras crias. 4Se quisesse desistir da empreitada, ela morreria, sem possibilidade de voar. 5Mesmo neste caso de consentida clausura, a divisória foi inventada para ser negada.
6Mas o que aqueles pássaros construíram não foi uma parede: foi um buraco. Erguemos paredes inteiras como se fôssemos tucanos cegos. De um e do outro lado há sempre algo que morre, truncado do seu lado gêmeo. Aprendemos a demarcarmo-nos do Outro e do Estranho como se fossem ameaças à nossa integridade. Temos medo da mudança, medo da desordem, medo da complexidade. 7Precisamos de modelos para entender o universo (que é, afinal, um pluriverso ou um multiverso), que foi construído em permanente mudança, no meio do caos e do imprevisível.
A própria palavra “fronteira” nasceu como um conceito militar, era o modo como se designava a frente de batalha. 8Nesse mesmo berço aconteceu um fato curioso: um oficial do exército francês inventou um código de gravação de mensagens em alto-relevo. Esse código servia para que, nas noites de combate, os soldados pudessem se comunicar em silêncio e no escuro. Foi a partir desse código que se inventou o sistema de leitura Braille. No mesmo lugar em que nasceu a palavra “fronteira” sucedeu um episódio que negava o sentido limitador da palavra.
A fronteira concebida como vedação estanque tem a ver com o modo como pensamos e vivemos a nossa própria identidade. 9Somos um pouco como a tucana que se despluma dentro do escuro: temos a ilusão de que a nossa proteção vem da espessura da parede. Mas seriam as asas e a capacidade de voar que nos devolveriam a segurança de ter o mundo inteiro como a nossa casa.
MIA COUTO
Adaptado de fronteiras.com, 10/08/2014.
Precisamos de modelos para entender o universo (que é, afinal, um pluriverso ou um multiverso), (ref.7)
Nesse trecho, o conteúdo entre parênteses propõe uma reformulação da palavra universo, em função da argumentação feita pelo autor. Essa reformulação explora o seguinte recurso:
a) contraste de morfemas de sentidos distintos.
b) citação de neologismos de valor polissêmico.
c) comparação de conceitos relacionados ao tema.
d) enumeração de sinônimos possíveis no conte.