UERJ (julho) 2007 – Questão 12

Linguagens / Português / Língua e Funções / Interpretação de texto
A terceira margem do rio
Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. (...) Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa. (...)
Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou1 o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula2trouxa, não fez a alguma recomendação. (...)
Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo – a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. (...)
E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. (...)
Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio – pondo perpétuo. (...) E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse3 sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma4 e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse – se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia. (...)
Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a
voz: –“Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!...” E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.
Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’água, proava5 para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto – o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor,
arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.
Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento6? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro – o rio.
 
(ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.)
Vocabulário:
encalcar – comprimir
matula – saco com comida
bubuiar – flutuar
tororoma – corrente fluvial forte e ruidosa
proar – pôr a proa em uma dada direção
De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio – pondo perpétuo.(ref.2)
Se o meu pai, sempre fazendo ausência apresenta o seguinte valor argumentativo em relação ao fragmento anterior:
a) causa.
b) comparação.
c) consequência.
d) exemplificação.
Esta questão recebeu 3 comentários

Veja outras questões semelhantes:

FUVEST 2017 – Questão 11
No último período do texto, o ritmo que o narrador imprime ao relato de seus amores corresponde sobretudo ao que se encontra expresso em a) “prólogo de uma vida de delícias” (ref.1). b) “prazeres que rematavam em dor” (ref.2). c) “hipocrisia paciente e sistemática” (ref.3). d) “paixão sem freio”(ref.4). e) “o livro daquele prólogo” (ref.5).
ENEM 2ªAplicação Linguagens e Matemática 2011 – Questão 133
Árvore da Língua ...
ENEM 1ºAplicação - Linguagens e Humanas 2018 – Questão 23
No tradicional concurso de miss, as candidatas apresentaram dados de feminicídio, abuso sexual e estupro no país. ...
FUVEST 2017 – Questão 12
Dentre os recursos expressivos empregados no texto, tem papel preponderante a ...
Base dudow 2000 – Questão 59
A forma mais difundida de paquera entre os sauditas são os cafés que oferecem acesso à internet. São poucos, mas estão se tornando uma ferramenta de aproximação entre os jovens. E estão se mostrando eficientes. ...