A seguir, no Texto I, o crítico literário Alfredo Bosi associa a publicação, em 1881, de Memórias póstumas de Brás Cubas à inauguração de uma nova fase na carreira literária de seu autor, Machado de Assis. No Texto II, excerto do capítulo “O verdadeiro Cotrim”, do mesmo romance, Brás Cubas descreve o caráter de seu cunhado Cotrim, ex-traficante de escravos.
Texto I
A revolução dessa obra, que parece cavar um fosso entre dois mundos, foi uma revolução ideológica e formal:aprofundando o desprezo às idealizações românticas e ferindo no cerne o mito do narrador onisciente, que tudo vê e tudo julga, deixou emergir a consciência nua do indivíduo, fraco e incoerente. O que restou foram as memórias de um homem igual a tantos outros, o cauto1e desfrutador Brás Cubas
(BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira.
40. ed.São Paulo: Cultrix, 2002, p.177)
Texto II
Talvez pareça excessivo o escrúpulo do Cotrim, a quem não souber que ele possuía um caráter ferozmente honrado.
(...) Não era perfeito, decerto; tinha, por exemplo, o sestro2 de mandar para os jornais a notícia de um ou outro benefício que praticava, — sestro repreensível ou não louvável, concordo; mas ele desculpava-se dizendo que as boas ações eram contagiosas, quando públicas; razão a que se não pode negar algum peso. Creio mesmo (e nisto faço o seu maior elogio) que ele não praticava, de quando em quando, esses benefícios se não com o fim de espertar a filantropia dos outros; e se tal era o intuito, força é confessar que a publicidade tornava-se uma condição sine qua non3. Em suma, poderia dever algumas atenções, mas não devia um real a ninguém.
(ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas.
São Paulo: Ateliê, 2001, p. 224-225)
Vocabulário:
1cauto: cauteloso, prevenido.
2sestro: vício.
3condição sine qua non: condição sem a qual não é possível o que se pretende.
No Texto I, o crítico literário Alfredo Bosi apresenta sua leitura a respeito da singularidade e da universalidade do Realismo praticado por Machado de Assis. É possível afirmar que, no Texto II, Brás Cubas confirma essa visão sobre a prosa realista machadiana, pois manifesta:
a) consciência da natureza contraditória do ser humano,capaz de feitos virtuosos e defeituosos.
b) compreensão da inocência inerente ao comportamento humano, defensável por suas virtudes.
c) constatação da conduta instintiva do ser humano,inconsciente dos efeitos de seus atos.
d) percepção da essência defeituosa do caráter humano,condenável por seus vícios.