FUVEST 2008 – Questão 48

Linguagens / Literatura / Modernismo Brasileiro: 3a Fase / Clarice Lispector
Amor
Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação. 
Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, mal-criados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida. 
Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem. 
No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. […]
Clarice Lispector
No texto, afirma-se que Ana “plantara as sementes” e “E cresciam árvores”. Mais adiante: “Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela”. Essa última frase, tomada em conjunto com as anteriores, traz ao texto um tom de
 
a) comicidade.
b) profecia.
c) perplexidade.
d) ironia.
e) indignação.
Esta questão recebeu 11 comentários

Veja outras questões semelhantes:

FUVEST 2009 – Questão 4
O debate atual em torno dos biocombustíveis, como o de cana-de-açúcar e o biodiesel, inclui o efeito estufa. Tal efeito garante temperaturas adequadas à vida na Terra, mas seu aumento indiscriminado é danoso. Com relação a esse aumento, os...
UERJ 2005 – Questão 14
O anúncio, concebido para uma campanha contra drogas, utiliza pouco a linguagem verbal. ...
UERJ 2009 – Questão 13
Os textos tratam da juventude e de sua participação na política e na sociedade. No entanto, entre a perspectiva apresentada na letra da música de Cazuza e Frejat e o que se manifesta no outro texto se estabelece uma diferença principal em...
Base dudow 2000 – Questão 43
Costuma-se datar desta obra a introdução do Romantismo em Portugal. Trata-se, com algum efeito, de um poema narrativo em torno de um herói com algo de byroniano, as descrições conformam-se com o cenário romântico vago e noturno; as entidades mitológicas são, de maneira geral, abolidas ou nacionalizadas. O trecho se refere a: a) Suspiros poéticos e saudades. b) Frei Luís de Sousa. c) "Camões". d) Clepsidra. e) Folhas Caídas.
FUVEST 2006 – Questão 15
Na frase “que nos faz professores e doutores do que não vimos”, o pronome sublinhado retoma a expressão antecedente: a) “para lugares”. b) “o mundo”. c) “um homem”. d) “essa arrogância”. e) “como o imaginamos”.