José da Silva havia enriquecido no contrabando dos negros da África e fora sempre mais ou menos perseguido e malquisto pelo povo do Pará; até que, um belo dia, se levantou contra ele a própria escravatura, que o teria exterminado, se uma das suas escravas mais moças, por nome Domingas, não o prevenisse a tempo. Logrou passar incólume ao Maranhão, não sem pena de abandonar seus haveres e risco de cair em novos ódios, que esta província, como vizinha e tributária do comércio da outra, sustentava instigada pelo Farol contra os brasileiros adotivos e contra os portugueses. Todavia, conseguiu sempre salvar algum ouro; metal que naquele bom tempo corria abundante por todo o Brasil e que mais tarde a Guerra do Paraguai tinha de transformar em condecorações e fumaça.
A fuga fizeram eles, senhor e escrava, a pé, por maus caminhos, atravessando os sertões. [...] Foram dar com os ossos no Rosário. O contrabandista arranjou-se o melhor que pôde com a escrava que lhe restava, e, mais tarde, no lugar denominado São Brás, veio a comprar uma fazendola, onde cultivou café, algodão, tabaco e arroz.
Depois de vários abortos, Domingas deu à luz um filho de José da Silva. Chamou-se o vigário da freguesia e, no ato do batismo da criança, esta, como a mãe, receberam solenemente a carta de alforria.
Essa criança era Raimundo.
Na capital, entretanto, acalmavam-se os ânimos. José prosperou rapidamente no Rosário; cercou a amante e o filho de cuidados; relacionou-se com a vizinhança, criou amizades, e, no fim de pouco tempo, recebia em casamento a Sra. D. Quitéria Inocência de Freitas Santiago, viúva, brasileira rica, de muita religião e escrúpulos de sangue, e para quem um escravo não era um homem, e o fato de não ser branco constituía só por si um crime.
Foi uma fera! A suas mãos, ou por ordem dela, vários escravos sucumbiram ao relho, ao tronco, à fome, à sede, e ao ferro em brasa. Mas nunca deixou de ser devota, cheia de superstições; tinha uma capela na fazenda, onde a escravatura, todas as noites, com as mãos inchadas pelos bolos, ou as costas lanhadas pelo chicote, entoava súplicas à Virgem Santíssima, mãe dos infelizes.
Ao lado da capela, o cemitério das suas vítimas.
(Aluísio Azevedo, O Mulato.)
Os retratos de José da Silva e de D. Quitéria traçados pelo narrador
a) revelam, de um ponto de vista subjetivo, pessoas de índoles muito parecidas no tratamento aos escravos e no gosto de acumular riquezas.
b) destacam as diferenças entre os dois pelo ponto de vista adotado na descrição, o qual é irônico para destacar o preconceito racial e a crueldade da mulher.
c) pouco se distinguem, graças à objetividade do narrador, que os traça sem expressar juízos de valor acerca do caráter das personagens.
d) expõem a dificuldade de o narrador caracterizar um e outra, porque as atitudes dessas personagens diante da vida são bastante parecidas.
e) compõem-se pela adjetivação abundante, que desenha o perfil moral das personagens, pouco importando suas ações na trama que se desenrola.