"[...] Não resguardei os apontamentos obtidos em largos dias e meses de observação: num momento de aperto fui obrigado a atirá-los na água. Certamente me irão fazer falta, mas terá sido uma perda irreparável? Quase me inclino a supor que foi bom privar-me desse material. Se ele existisse, ver-me-ia propenso a consultá-lo a cada instante, mortificar-me-ia por dizer com rigor a hora exata de uma partida, quantas demoradas tristezas se aqueciam ao sol pálido, em manhã de bruma, a cor das folhas que tombavam das árvores, num pátio branco, a forma dos montes verdes, tintos de luz, frases autênticas, gestos, gritos, gemidos. Mas que significa isso? Essas coisas verdadeiras podem não ser verossímeis. E se esmoreceram deixá-las no esquecimento: valiam pouco, pelo menos imagino que valiam pouco. Outras, porém, conservaram-se, cresceram, associaram-se, e é inevitável mencioná-las. Afirmarei que sejam absolutamente exatas? Leviandade. [...] Nesta reconstituição de fatos velhos, neste esmiuçamento, exponho o que notei, o que julgo ter notado. Outros devem possuir lembranças diversas. Não as contesto, mas espero que não recusem as minhas: conjugam-se, completam-se e me dão hoje impressão de realidade. [...]"
Graciliano Ramos. Memórias do cárcere. Rio, São Paulo: Record, 1984.
O fragmento transcrito expressa uma reflexão do autor-narrador quanto à escrita de seu livro contando à experiência que viveu como preso político, durante o Estado Novo.
No que diz respeito às relações entre escrita literária e realidade, é possível depreender, da leitura do texto, a seguinte característica da literatura:
a) Revela ao leitor vivências humanas concretas e reais;
b) Representa uma conscientização do artista sobre a realidade;
c) Dispensa elementos da realidade social exterior à arte literária;
d) Constitui uma interpretação de dados da realidade conhecida.
e) Não constitui uma interpretação de dados da realidade conhecida.