- Primo Argemiro!
E, com imenso trabalho, ele gira no assento, conseguindo pôr-se de-banda, meio assim.
Primo Argemiro pode mais: transporta uma perna e se escancha no cocho.
- Que é Primo Ribeiro?
- Lhe pedir uma coisa... Você faz?
- Vai dizendo, Primo.
- Pois então, olha: quando for a minha hora você não deixe me levarem p'ra o arraial... Quero ir mais é p'ra o cemitério do povoado... Está desdeixado, mas ainda é chão de Deus... Você chama o padre, bem em-antes... E aquelas coisinhas que estão numa capanga bordada, enroladas em papel-de-venda e tudo passado com cadarço, no fundo da canastra... se rato não roeu... você enterra junto comigo... Agora eu não quero mexer lá... Depois tem tempo... Você promete?...
- Deus me livre e guarde Primo Ribeiro... O senhor ainda vai durar mais do que eu.
- Eu só quero saber é se você promete...
- Pois então, se tiver de ser desse jeito de que Deus não há-de querer, eu prometo.
- Deus lhe ajude Primo Argemiro.
E Primo Ribeiro desvira o corpo e curva ainda mais a cara.
Quem sabe se ele não vai morrer mesmo? Primo Argemiro tem medo do silêncio.
- Primo Ribeiro, o senhor gosta d'aqui?...
- Que pergunta! Tanto faz... É bom p'ra se acabar mais ligeiro... O doutor deu prazo de um ano... Você lembra?
- Lembro! Doutor apessoado, engraçado... Vivia atrás dos mosquitos, conhecia as raças lá deles, de olhos fechados, só pela toada da cantiga... Disse que não era das frutas e nem da água... Que era o mosquito que punha um bichinho amaldiçoado no sangue da gente... Ninguém não acreditou... Nem o arraial. Eu estive lá com ele...
- Primo Argemiro o que adianta...
-... E então ele ficou bravo, pois não foi? Comeu goiaba, comeu melancia da beira do rio, bebeu água do Pará e não teve nada...
- Primo Argemiro...
-... Depois dormiu sem cortinado, com janela aberta... Apanhou a intermitente; mas o povo ficou acreditando...
- Escuta! Primo Argemiro... Você está falando de-carreira, só para não me deixar falar!
- Mas, então, não fala em morte Primo Ribeiro!... Eu, por nada que não queria ver o senhor se ir primeiro do que eu...
- P'ra ver!... Esta carcaça bem que está aguentando... Mas, agora, já estou vendo o meu descanso, que está chega-não-chega, na horinha de chegar...
- Não fala isso Primo!... Olha aqui: não foi pena ele ter ido s'embora? Eu tinha fé em que acabava com a doença...
- Melhor ter ido mesmo... Tudo tem de chegar e de ir s'embora outra vez... Agora é a minha cova que está me chamando... Aí é que eu quero ver! Nenhumas ruindades deste mundo não têm poder de segurar a gente p'ra sempre, Primo Argemiro...
João Guimarães Rosa, "Sarapalha", do livro SAGARANA.
João Guimarães Rosa, em Sagarana, permite ao leitor observar que:
a) explora o folclórico do sertão.
b) em episódios muitas vezes palpitantes surpreende a realidade nos mais leves pormenores e trabalha a linguagem com esmero.
c) limita-se ao quadro do regionalismo brasileiro.
d) é muito sutil na apresentação do cotidiano banal do jagunço.
e) é intimista hermético.