— Não refez então o capítulo? – indagou ela logo que entrei.
— Oh, não, Miss Jane. Suas palavras abriram-me os olhos.
Convenci-me de que não possuo qualidades literárias e não quero insistir – retruquei com ar ressentido.
— Pois tem de insistir – foi sua resposta (...) Lembre-se do esforço incessante de Flaubert* para atingir a luminosa clareza que só a sábia simplicidade dá. A ênfase, o empolado, o enfeite, o contorcido, o rebuscamento de expressões, tudo isso nada tem com a arte de escrever, porque é artifício e o artifício é a cuscuta** da arte. Puros maneirismos que em nada contribuem para o fim supremo: a clara e fácil expressão da idéia.
— Sim, Miss Jane, mas sem isso fico sem estilo ...
Que finura de sorriso temperado de meiguice aflorou nos lábios da minha amiga!
— Estilo o senhor Ayrton só o terá quando perder em absoluto a preocupação de ter estilo. Que é estilo, afinal?
— Estilo é ... – ia eu responder de pronto, mas logo engasguei, e assim ficaria se ela muito naturalmente não mo definisse de gentil maneira.
— ... é o modo de ser de cada um. Estilo é como o rosto: cada qual possui o que Deus lhe deu. Procurar ter um certo estilo vale tanto como procurar ter uma certa cara. Sai máscara fatalmente – essa horrível coisa que é a máscara ...
— Mas o meu modo natural de ser não tem encantos, Miss Jane, é bruto, grosseiro, inábil, ingênuo. Quer então que escreva desta maneira?
— Pois perfeitamente! Seja como é, e tudo quanto lhe parece defeito surgirá como qualidades, visto que será reflexo da coisa única que tem valor num artista – a personalidade.
(Monteiro Lobato,
O presidente negro.)
*Gustave Flaubert (1821–1880), escritor realista francês considerado um dos maiores do Ocidente.
** cuscuta planta parasita.