– Canudos pretos! exclamou ele.
Eram as calças pretas que eu acabava de vestir. Exclamou e riu, um risinho em que o espanto vinha mesclado de escárnio, o que ofendeu grandemente o meu melindre de homem moderno. Porque, note V. Exª, ainda que o nosso tempo nos pareça digno de crítica, e até de execração, não gostamos de que um antigo venha mofar dele às nossas barbas. Não respondi ao ateniense; franzi um pouco o sobrolho e continuei a abotoar os suspensórios. Ele perguntou-me então por que motivo usava uma cor tão feia...
– Feia, mas séria, disse-lhe. Olha, entretanto, a graça do corte, vê como cai sobre o sapato, que é de verniz, embora preto, e trabalhado com muita perfeição.
E vendo que ele abanava a cabeça:
– Meu caro, disse-lhe, tu podes certamente exigir que o Júpiter Olímpico seja o emblema eterno da majestade: é o domínio da arte ideal, desinteressada, superior aos tempos que passam e aos homens que os acompanham. Mas a arte de vestir é outra coisa. Isto que parece absurdo ou desgracioso é perfeitamente racional e belo, – belo à nossa maneira, que não andamos a ouvir na rua os rapsodas recitando os seus versos, nem os oradores os seus discursos, nem os filósofos as suas filosofias. Tu mesmo, se te acostumares a ver-nos, acabarás por gostar de nós, porque...
– Desgraçado! bradou ele atirando-se a mim.
Antes de entender a causa do grito e do gesto, fiquei sem pinga de sangue. A causa era uma ilusão. Como eu passasse a gravata à volta do pescoço e tratasse de dar o laço, Alcibíades supôs que ia enforcar-me, segundo confessou depois. E, na verdade, estava pálido, trêmulo, em suores frios. Agora quem se riu fui eu. Ri-me, e expliquei-lhe o uso da gravata, e notei que era branca, não preta, posto usássemos também gravatas pretas. Só depois de tudo isso explicado é que ele consentiu em restituir-ma. Atei-a enfim, depois vesti o colete.
– Por Afrodita! exclamou ele. És a coisa mais singular que jamais vi na vida e na morte. Estás todo cor da noite – uma noite com três estrelas apenas – continuou apontando para os botões do peito. O mundo deve andar imensamente melancólico, se escolheu para uso uma cor tão morta e tão triste. Nós éramos mais alegres; vivíamos...
(ASSIS, M. Uma visita de Alcibíades (Carta do desembargador X... ao chefe de polícia da Corte.) In: Papéis avulsos. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011. p.230-231.)
Com base nesse trecho e na prévia leitura do conto, é correto afirmar que a história é narrada,
a) em primeira pessoa, pelo ex-companheiro de estudos do chefe de polícia, a quem dirige correspondência relatando fato extraordinário ocorrido em sua residência.
b) em primeira pessoa, por uma testemunha ocular, detentora de carta escrita pelo desembargador X, na qual a autoridade registra sua falta de apreço pela figura do ateniense Alcibíades.
c) em primeira pessoa, por Machado de Assis, que critica as frivolidades da classe dominante carioca do século XIX, preocupada mais com a aparência do que com a essência. d) em terceira pessoa, pelo destinatário da carta, delegado da Corte, responsável por investigar as causas da morte de seu amigo, o grego Alcibíades.
e) em terceira pessoa, por Alcibíades, personagem grego ficcionalmente retirado das páginas de obra produzida por Plutarco e inserido na cidade do Rio de Janeiro do século XIX.