1Pinta-se o amor sempre menino, porque ainda que passe dos sete anos, como o de 2Jacó, nunca chega à idade de uso da razão. Usar de razão e amar são duas cousas que não se ajuntam. A alma de um menino, que vem a ser? Uma vontade com afetos e um entendimento sem uso. Tal é o amor vulgar. Tudo conquista o amor quando conquista uma alma; porém o primeiro rendido é o entendimento. Ninguém teve a vontade 3febricitante, que não tivesse o entendimento 4frenético. O amor deixará de variar, se for firme, mas não deixará de 5tresvariar, se é amor. Nunca o fogo abrasou a vontade, que o fumo não cegasse o entendimento. Nunca houve enfermidade no coração, que não houvesse fraqueza no juízo. Por isso, os mesmos pintores do amor lhe vendaram os olhos. E como o primeiro efeito ou a última disposição do amor é cegar o entendimento, daqui vem que isto que vulgarmente se chama amor, tem mais partes de ignorância; e quantas partes têm de ignorância, tantas lhe faltam de amor. Quem ama, porque conhece, é amante; quem ama, porque ignora, é 6néscio. Assim como a ignorância na ofensa diminui o delito, assim no amor diminui o merecimento. Quem ignorando ofendeu, em rigor não é delinquente; quem ignorando amou, em rigor não é amante. (...)
Quatro ignorâncias podem concorrer em um amante que diminuam muito a perfeição e merecimento do seu amor. Ou porque não se conhecesse a si, ou porque não conhecesse o fim onde há de parar amando. Se não conhecesse a si, talvez empregasse o seu pensamento onde o não havia de pôr, se se conhecera. Se não conhecesse a quem amava, talvez quisesse com grandes finezas a quem havia de 7aborrecer, se o não ignorara. Se não conhecesse o amor, talvez se empenhasse cegamente no que não havia de empreender, se o soubera. Se não conhecesse o fim em que havia de parar amando, talvez chegasse a padecer os danos a que não havia de chegar, se os previra. Todas estas ignorâncias que se acham nos homens, em Cristo foram ciências, e em todas, e cada uma, crescem os quilates de seu extremado amor. Conhecia-se a si, conhecia a quem amava, conhecia o amor, e conhecia o fim onde havia de parar amando.
(Padre Antônio Vieira, Sermão do Mandato)
1. ― Pinta-se o amor sempre menino: referência a Cupido, personificação mitológica do amor representada como uma criança alada, que disparava cegamente suas setas contra os mortais.
2. Jacó: personagem bíblica que serviu sete anos por amor de Raquel, já referido na Lírica de Camões, a propósito do soneto ― Sete anos de pastor Jacó servia.
3. Febricitante: febril, ardente.
4. Frenético: desvairado, enlouquecido.
5. Tresvariar: desvairar, delirar.
6. Néscio: ignorante.
7. Aborrecer: corresponde à forma atual aborrecer-se com.